sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Gritaria

Há uma certa gritaria no silêncio. (No meu e não só...)

De não se dizer, diz-se, de través. Nas adversativas, nas reticências, na informação que falta... Diz-se o quê? Diz-se! Há sentido. Só isso: é sentido, há um sentimento sentido. Qual? Não sei, há um.

No cimo dos montes pode-se gritar com o corpo, com os pés e as mãos. Já não é preciso fazer força a cerrar a boca, porque o corpo está ocupado no grito da sua expansão. E aí há verdadeiro silêncio e verdadeira gritaria. A verdade está à vista, não vale a pena esconder ou ter vergonha. Manter a compostura. Fazer segredo.

Chama-se alegria. (Que idiota, a esconder a alegria!!! Foi o que ficou na fotografia, esse esconder, mas lá estava o pé suspenso a revelá-la...)

É a alegria que causa as nódoas negras. O riso que vem do fundo da alma... desequilibra.

(Sei que hoje não faço sentido nenhum. Sorriu-me de mim mesma, mas não deixo de levar tudo muito a sério. Meço cada palavra lida e dita, procuro destilar-lhe o significado. Só uma adolescente lê e ouve assim. Hoje sou jovem, tenho esperança.)

Preciso de refazer as nódoas negras. Hei de voltar a desequilibrar-me. Em breve.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Sem nome

Como se diz algo que não tem nome? Que nunca foi dito? Que fica nas entrelinhas, se é que as há? Nos silêncios? Naqueles momentos depois das despedidas? Quando se volta costas e não se olha mais para trás? Que se sente aí, porque se está a esconder?

Algo que só existe no presente e desvanece na distância? Fica na memória, a pairar, em indeterminação. Só tem indícios, que são fortes. Fortes como um comprometimento. Uma lealdade. Mas que fica suspensa, sem peso, com um imenso peso que puxa, mas não prende. Livre. Demasiado... Não existe para além do momento em que existe absolutamente.

Sinto a mão no meu braço, que me eleva ligeiramente, deixando-me em desequilíbrio, sobre uma só perna. Tão pequena que eu sou, no cimo do monte. Puxa-me e liberta-me do chão. Sorrio, sem saber o que esperar. Sem saber o que sentir. Uma ligeira vergonha escondida no sorriso. Uma espécie de pudor. Como se a lente espreitasse um segredo dentro de mim que não queria revelar.

Tenho um segredo sem nome. O que sei? É um padecimento que alimento activamente... É do tamanho e da forma dos montes, mas não tem extensão. É feito da satisfação de andar e de ver o mesmo, mesmo quando ando sozinha. Condensa-se numa luta que não dá tréguas com a noite, só com a partida. É violento, feroz, mas também tranquilo como uma conversa sob a luz da lua. Causa dor e prazer. É uma surpresa real e uma impossibilidade. Não tem futuro. Só pode ser presente, de vez em quando. Deixa uma marca que não se vê, mas que não deixa de se fazer sentir.

Tenho um segredo na serra.

domingo, 25 de setembro de 2011

Desastre natural

Hoje a barragem rebentou, as lágrimas escorrem a quatro pela cara abaixo. Morro de saudade, aqui engaiolada.  Rejeito tudo isto, por mais que me esforce. Apetece-me pegar no carro e ir para Norte, só parar chegando a Vilarinho. O trabalho, a casa, tudo... Não estou a conseguir voltar, por mais que me esforce. Tenho o coração, a alma, o espírito nos montes, e o corpo aqui, a penar sozinho.
No mapa, dá para dobrar a distância, fazê-la pequena. Mas na realidade é grande e não dá tempo... Mais do que o espaço, é o tempo que limita. Perco o meu tempo, a minha vida, por causa da distância... Estou engaiolada pelo tempo. Não posso continuar a viver assim. Com o desequilíbrio todo por dentro, sem se transformar em benfazejos passos de subida. Porque o desequilíbrio por fora é tranquilidade por dentro.
Tenho que lutar pelo que quero. Estender a mão e agarrar o que quero. Decidir. Arriscar. Viver. Calçar as botas e andar para a frente.
Mas hoje ainda não. Hoje vou deixar a dor doer-me muito, como um aguilhão, para que o cavalo preso rompa as cordas. Para que o terremoto aconteça e destrua todas as barreiras. Porque eu sou uma força da natureza represada, à espera da catástrofe inevitável.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Adenda ao Inventário

Uma pedra apanhada na descida da Calcedónia, depois de ter feito a fenda.
Nódoas negras, em número indeterminado, feitas durante a passagem pela fenda e na subida ao topo, em ambos os joelhos.
Um pequeno ladrilho azul da piscina da Cerdeira, em que nunca nadei.
Muito sono (o correspondente a quatro noites pouco dormidas).
Vontade de voltar para lá - mal as negras sarem (promessa que faço a mim mesma) - em quantidade demasiado grande para contar.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Voltar a Vilarinho

Vou voltar. 21 dias depois de vir para baixo. 


Reduzida agora à expectativa de uma viagem alinhavada, imagino menos do que antes. Esperam-me os mesmos 410 quilómetros, agora de camioneta, em duas partes. A primeira até Braga, e daí para lá a segunda. Vou dormir no caminho, noite dentro, até de madrugada, como se quisesse que essa distância fosse apagada. Espero dormir.


No fim, aguarda-me subir à Calcedónia. Mal chegue, far-me-ei ao caminho. Pois é para isso que vou, para caminhar, para fazer avançar os meus passos em desequilíbrio. Temo e anseio. Arrisco. Vou fazer a fenda, passar pelo caminho estreito, aprender a subir com o corpo todo. Sentir o meu corpo todo no esforço. Ser eu, apropriar-me de mim, do que eu penso, sinto e quero. Condição para que me eleve e extravase. 


Depois, no dia seguinte, o Pé de Cabril, onde deixei a alma numa gargalhada verdadeira diante de um obstáculo maior do que eu, e que depois já não o foi, nem maior do que eu nem obstáculo. O meu corpo respondeu-lhe à altura, nem eu sei como. E a minha alma ficou lá presa, na gargalhada, no movimento, na profunda satisfação. Quiseste ajudar-me a descer, eu não deixei. Se já o tinha subido! 


Isto aprendi lá: de nada depender. De ninguém. Mas quando se está, é porque se quer, porque se gosta. Agora. Por dádiva de si ao que se ama. Estar inteiro no que se faz. Pois, por vezes, a vida depende disso, em desequilíbrio. Dessa imensa concentração no essencial. E é em desequilíbrio que me encontro. Já não estou aqui, sou tensão, uma flecha apontada a Vilarinho, ao Gerês. Porque para aí? Que tem esse lugar? Tira-me tudo, obriga-me a pesar todo o peso que trago às costas e a largar o que não importa. A só levar o essencial.  Abrigo, comida e, acima de tudo, entrega. Sem rede. Até sem abrigo e sem comida... Contando que a vida dá, se a ela nos entregarmos.


O essencial... O que é? Essa é a questão. O que está lá a puxar-me? A liberdade do lobo. E a sua lealdade. A dureza do monte. E a sua beleza. A contradição plena de sentido. A impossibilidade, o não-ser prenhe de possibilidades. É isso que procuro. Chama-se futuro, chama-se respirar sem medo de morrer. Chama-se SER.


Pura indeterminação que me deixa completamente determinada. Vou voltar para ser.

Requiem

Viam a luz nas palhas de um curral,
Criavam-se na serra a guardar gado.
À rabiça do arado,
A perseguir a sombra nas lavras,
Aprendiam a ler
O alfabeto do suor honrado.
Até que se cansavam
De tudo o que sabiam,
E, gratos, recebiam
Sete palmos de paz num cemitério
E visitas e flores no dia de finados.
Mas, de repente, um muro de cimento
Interrompeu o canto
De um rio que corria
Nos ouvidos de todos.
E um Letes de silêncio represado
Cobre de esquecimento
Esse mundo sagrado
Onde a vida era um rito demorado
E a morte um segundo nascimento.
Miguel Torga
Barragem de Vilarinho das Furnas, 18 de Julho de 1976

sábado, 10 de setembro de 2011

Tu não


Porque os outros se mascaram mas tu não.
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.


Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.


Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não."

                                      Sophia de Mello Breyner Andresen
Lembrou-me gente que conheci e que muito aprecio, capaz de arriscar pelo que ama. Queira eu conseguir ser assim.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Ventuzelo

Sabia que era por ali, mas já não me lembrava onde começava o estradão para lá. Do banco de trás do carro, disseste onde era e também que estava abandonada. A casa-abrigo de Ventuzelo. Eu não sabia. E na altura não pensei muito nisso. Relatei os bons momentos que tinha lá passado, com aquele grupo, o 'grupo de Ventuzelo', nas palavras de hoje de um dos amigos que restam dessa altura.
Hoje, finalmente, percebi a ruína. O abandono. Tal como a casa, também o grupo. Éramos colegas e professores de Filosofia. Íamos para o Gerês caminhar e traduzir juntos. Partilhávamos a casa como os pensamentos e os passos. Eu lembro-me de me maravilhar ao acordar, de Inverno, acima das nuvens. Da frescura da fonte. De não sentir tanto frio como esperava. De gostar das minhas primeiras botas de caminhada. De ficar acordada, com os colegas, à lareira, até de madrugada, todos demasiado entusiasmados para dormir. Como cachorrinhos à volta do fogo. (E as camas, tão frias e húmidas, não apeteciam...)
Todos unidos pelo mesmo amor à Verdade. E uns aos outros, porque isso nos ligava. E o Gerês era o enquadramento perfeito, o lugar propício, o tempo oportuno. Uma espécie de família à volta da mesa, rodeada de pedra, rodeada por montes. Um mundo à parte. Um mundo de pertença, foi o que a faculdade foi para mim, um mundo protegido, seguro, cheio de expectativa e encanto.
Um mundo que perdi, que deixei arruinar, como a casa de Ventuzelo. Abandonei-o. Está povoado de fantasmas e equívocos. E tristeza. Estou hoje de luto pelo que abandonei.
Não foi premeditado. Não foi por nenhuma mágoa. Foi porque deixei de ter importância para mim mesma e pensei que também não importava para os outros. Apaguei-me. A minha luz, a pouco e pouco, abandonou-me, fiquei no canto escuro do isolamento a dois.
Só agora, depois dos dias de felicidade a caminhar, é que percebi o que tinha deixado de ser, o que perdi, o quão pouco feliz tinha passado a ser, durante tantos anos... O quanto sinto falta da casa-abrigo. De lá chegarmos ao cair da tarde, com a lareira acesa, qual incêndio interior, assustador e reconfortante, depois da caminhada.

domingo, 4 de setembro de 2011

Mata da Albergaria

Quando a luz do Sol é coada pelas folhas dos carvalhos, dos castanheiros e de outras árvores que não sei nomear, tornando-se verde, o meu hemisfério esquerdo apaga-se e o direito toma conta de mim. Fico no presente, sem medo de morrer.

Inventário

Um pedaço de ramo de carvalho com líquenes que veio preso junto ao pára-brisas sem eu saber.
Uma garrafa de água enchida na Mata da Albergaria e numa fonte do Campo do Gerês.
Duas pinhas pequeninas de pinheiro silvestre apanhadas na descida de Vale de Teixeira para Leonte.
Um galo de Barcelos.
Terra agarrada à tenda (já depositada nos canteiros do terraço).
Uma folha seca de carvalho, pequenina, encontrada entre a roupa suja.
Vontade de voltar - em quantidade demasiado grande para inventariar.

sábado, 3 de setembro de 2011

Saudade

Palavra dita portuguesa, mas que designa um universal. Sentimento de afastamento e de pertença. Só há afastamento, sensação de desterro, porque há pertença. Confusão do onde e do quem. Implica estar longe, de um lugar onde a nossa identidade está. E do nosso sangue, seja ele genético, seja ele espiritual. O onde e o quem, misturados: a nossa gente, a nossa terra.
Eu nasci desterrada. Cabra montesa desde que pude andar, empilhava banco em cima de cadeira e cadeirinha em cima de banco, para alcançar o cimo do frigorífico. A minha querida avó ficava em pânico. Ela é da planura do Alentejo. Andava de pé sobre as costas dos sofás, e a minha avó alentejana em cuidados. Pequenina como sempre fui, trepava às árvores que as minhas pernas permitiam, subia a prédios em construção... Andava na serra (minúscula) a que tinha acesso, andava pelos campos entre Odivelas e o Olival Basto, entre as vacas que então ainda por lá pastavam, por esses campos agora cobertos de alcatrão. Andava à procura da minha paisagem. Conheci-a depois. Mas sem gente. Não conheci quem se encontrasse lá como eu.
Ia lá, insistia em ir, mas julgo que ia sozinha, ainda que acompanhada. Arrastava atrás de mim? Talvez. Implica tenda, falta de conforto, esforço... Não se compadece da decadência do hotel. Chove-nos em cima em pleno Agosto ou faz um calor que morde a pele. Os insectos picam, as plantas arranham, a gente perde-se. Implica comer de lata, roupa suja, falta de tudo, despojamento. Não se compadece da decadência ordeira da cidade.
Ia, mas não me tornava num ser inteiro. Tinha rédeas e cabresto. Compostura.
Só este ano tive liberdade. Fui sozinha. 410 kms. Porque quis. Porque o Gerês é a minha 'coisa'. Ou eu sou dele... Deixei, bem sei, a família em cuidados. A minha avó dizia para não me meter nos fogos, mas o fogo estava dentro, à espera de se soltar.

Abri os olhos e vi, pela primeira vez, gente da minha gente. Outras cabras montesas - umas mais, outras menos, mas algumas muito, muito mais que eu. Que me ensinaram, que me mostraram, que partilharam comigo o Gerês.
E senti-me única, porque parte de um todo. Estranha singularidade, esta que se encontra ao encontrar outros. Como se o olhar do outro me fizesse ser: fui reconhecida, diria Hegel.
Fico reconhecida por essa partilha.
E cheia de saudades, da minha terra, da minha gente, não pelo sangue ou pela naturalidade, mas pela geração espiritual: a dos nascidos para subir.